quinta-feira, 3 de maio de 2007

Oito de Novembro



O dia começou chuvoso. Oito de novembro. Os ventos frios vinham me aguçar o arrependimento de ter deixado a cama quente em que há pouco eu era feliz. Nada é tão repulsivo quanto deixar a cama quente para que ela se torne fria com o passar das horas. Levanto. Meu objetivo é chegar ao ponto de ônibus o mais rápido possível sem que ninguém me veja; fujo do vento como quem corre da morte e as outras pessoas eu não vejo. Sigo. Passos rápidos e arredios rumo ao fim do dia, que me espera bem lá de longe [quando aceitamos a empreitada de viver o dia, buscamos o fim dele e apenas nos distraímos com o que se tem pra fazer para se chegar ao fim mais rápido]. Vejo que a cidade continua insossa. Se chove, ela fica caótica. Se faz frio, ela é cálida. Se há o sol, há poluição. Pelo menos com esse frio ameniza-se o amargo da poluição no céu. O ar fica um pouco mais pesado, menos marrom... mais cinza. Creio que pelo caminho insólito, cheio de esgotos e ruas pavimentadas, novas praças bonitas com seus velhos moradores, contei uns quinze homens e mulheres sem vida. Eles parecem que enchem meus passos de descompassos. Essas sem-vidas eu vejo. Não paro porque sou uma máquina, também não tenho vida como eles: sou um tanto parecido com essas caras mal lavadas e inchadas de pouco bafo de vida. Sou diferente porque não paro, não escuto suas vozes torpes, enlouquecidas com esse esquecimento da vida. Talvez esses corpos não esperem pelo fim do dia. Talvez a espera deles é pela noite, e aí sim podem ser homens e mulheres com vida, menos cinzas. Conto mais vinte e três no ponto do ônibus. São vidas deturpadas, mal vestidas, descabeladas; assim como eu, olham pro fim da avenida esperando o itinerário certo do que é certo pro fim do dia. Amontoam-se nas portas dos coletivos achando que vão entrar todos ao mesmo tempo. Como se fossem corpos a se fundir em uma massa só, e depois virar pizza ou coxinha da esquina. Não ligam pro quão bizarra é a cena que vos narro. São tantos quanto eu. Se há a brecha, chego mais rápido e embarco para o dia antes que os outros. Parece uma corrida de asnos para ver quem chega mais rápido ao fim do dia. Paro. Deixo um pouco de lado essas tarefas pueris de pensar e agir. Volto-me um pouco. Um retorno sempre é vitorioso. Chegar à minha cama seria deitar-me nela inda quente. Os passos rumo à volta são sublimes; conto um depois do outro, piso forte, olhar altivo. Chego até a achar que posso rir, tamanha decisão feliz e impensada que acabei de tomar. Rio, então. Alto. Gargalho. Babo. O que vão pensar de mim? Encosto-me numa esquina porque forças já não tenho mais pra rir. Esse sentimento de verdade se apodera dos meus atos. São vorazes. Invadem minhálma, ocupam essa terra já desvalida. O tempo é passado. Passam por mim e se entreolham. Não paro de rir. Nem um pouco. Não me contento em rir mais e mais alto e forçar o mundo que passa a olhar pra mim, sujeito qualquer. Sei que adormeci. Minhas costas já estão raladas pelo duro e concreto que é o chão. Devo estar ali há uns trezentos minutos. Não rio mais. Não espero mais. Não levanto mais.


(uma ode aos que moram nas ruas)

3 comentários:

Unknown disse...

Fantástico!!

Adorei os textos do blog. Vcs são meu orgulho.

Beijos

Felipe

Cathola disse...

Que coisa mais bonita e humana.
Quem bom que foi escrito e agora existe.
Que triste que ele precise ser escrito.
Que bosta precisar viver num mundo em que precisamos viver lembrando a todos que todos somos.
Beijos

disse...

Nossa, que lindo. Foda.